Incidência de lesões traumato-ortopédicas no futebol de campo feminino e sua relação com alterações posturais

Introdução

    A estrutura do rendimento no futebol tem características bastante específicas: o espaço de jogo é muito grande, exigindo uma grande capacidade física, principalmente em corridas; o fato de se jogar com os pés, exige uma elevada capacidade técnica e tática; os jogadores usam 4 variações de corrida: corrida lenta, velocidade sub-máxima, velocidade máxima e corrida para trás; e o elevado nível de estabilidade psíquica dos jogadores em função do baixo número de êxitos quantitativos (gols) conseguidos durante um jogo (FERNANDES, 1994).

    Por outro lado, mais da metade das atividades do jogador em uma partida são executadas sem a bola, cerca de 57,6% (cinqüenta e sete por cento e seis décimos), enquanto que as restantes 42,4% (quarenta e dois por cento e quatro décimos) são executadas com a posse da bola. Sendo que, na maioria dos casos, as lesões tráumato-ortopédicas ocorrem durante a posse de bola, quando ocorre a marcação do adversário (FERNANDES, 1994).

    O futebol moderno requer muitas qualidades físicas que parecem ser independentes da posição do futebolista. Capacidade de aceleração rápida, alta velocidade de corrida, boa habilidade para saltar, força explosiva dos músculos de membros inferiores, resistência de velocidade são exigências constantes para os atletas (SILVA, 2001).

    Nos últimos anos, o treinamento para jogadores de futebol de alto nível vem sofrendo modificação substancial em relação ao que era feito há algumas décadas. O número de jogos e de horas dedicadas às sessões de treinamentos aumentaram significativamente. Desde então, a dinâmica das cargas de treinamento também foi alterada, em decorrência da entrada de novos conceitos para a prática do futebol na atualidade (SILVA, 2001).

    O futebol apresenta características próprias que propiciam lesões traumato-ortopédicas. Por outro lado, temos na literatura que alterações posturais como genovaro ou valgo, curvas lordóticas ou escolióticas estruturadas, discrepâncias verdadeiras no comprimento dos membros, quadris com anteroversão ou retroversão, exagerado genu recurvatum e tipo anormal do pé aumentam o risco de lesões no esporte (GOULD III, 1993).

    Segundo SILVA (2002), os músculos trabalham em conjunto tanto para sua estática como para sua dinâmica, pois, o sistema nervoso central não atende o trabalho de um músculo isolado ou em um único plano, mas, sim, de forma tridimensional. Portanto, qualquer alteração postural causará a retração de suas cadeias musculares posturais e vice-versa, e qualquer agressão nestas cadeias causará um alteração de desalinhamento ósseo.

    Os nossos músculos são organizados, interligados e harmonizados entre si em forma de cadeias (BUSQUET, 2001; SOUCHARD, 1986; DENYS-STRUYF, 1995 e TANAKA e FARAH, 1997). Na contração de um músculo, ele não vai apenas puxar o tendão e o segmento que lhe diz respeito, mas também transmitir uma tensão muito longe através do sistema aponeurótico, por meio do reflexo miotático inverso ou reflexo inverso de estiramento, que foi descrito por Sherinton (SILVA, 2002).

    BRODY e THEIN (1998), diziam que a correção postural se faz necessária. Quando existe um mau alinhamento patelar, por exemplo, sempre existirão desvios compensatórios em outras articulações, pois todos os músculos estão associados entre si (SILVA, 2002).

    O objetivo deste estudo é analisar as lesões traumáticas ocorridas em futebol de campo feminino, verificando as relações dos traumas de maior incidência com as alterações posturais apresentadas pelas atletas lesionadas. Ratificando assim, a importância da Reeducação Postural Global no meio esportivo.

Metodologia

    A amostra foi formada por 38 atletas, com idade entre 14 a 18 anos, de um time feminino de futebol de campo. Foi feito um contato inicial com as atletas e o preparador físico do time para esclarecimento dos objetivos e etapas do trabalho. As atletas passaram por uma avaliação postural, seguindo os princípios de um protocolo do método RPG de SOUCHARD (1986), visando observar possíveis alterações posturais que pudessem predispô-las às lesões. Os treinos e jogos competitivos foram acompanhados para observação da incidência das lesões, registrando todas as ocorrências, por um período de 6 meses.


Resultados

    Observou-se que a entorse de tornozelo foi à ocorrência mais comum no período de observação, correspondendo há 34% das ocorrências, seguida por contusões nos membros inferiores que representaram 30% das ocorrências. A entorse de joelho também representou uma significativa ocorrência de 16% das lesões (Gráfico I).

    Este resultado é condizente com conclusões de GOULD III (1993), que considera o entorse de tornozelo a lesão mais comum nos esportes. Já a pesquisa de EITNER (1989), enfatizou que as contusões no joelho aparecem com mais freqüência ficando o entorse de tornozelo em segundo lugar e RODRIGUES (1994), enfatizou que 90% das lesões musculares em atletas de futebol, localizam-se no membro inferior.

    Utilizando a classificação dos graus de entorse de BROWN e NEUMANN (1996), observou-se que o entorse grau II foi o mais comum (Gráfico II). As atletas apresentavam frouxidão leve, edema de partes moles e dor moderada.

    Todas as entorses de tornozelo ocorridas durante esta pesquisa foram pelo mecanismo de inversão, lesionando os ligamentos laterais do tornozelo. Segundo EITNER (1989), a inversão do pé supinado e plantarmente fletido produz 85% (oitenta e cinco por cento) dos entorses. As estruturas ligamentares possuem maior reforço na loja medial do pé e tornozelo, como também, a diferença angular entre as duas pinças maleolares propicia maior exposição do compartimento lateral".

    Observou-se também, que as meio-campistas foram as atletas que mais sofreram lesões traumáticas, ou seja, 66% das ocorrências foram sofridas pelas atletas de meio-campo (Gráfico III). Para GOULD III (1993), estes atletas são mais exigidos fisicamente do que os atletas de outros setores, pois, fazem movimentos rotacionais em excesso e correm maior distância na velocidade submáxima, sendo desta forma, mais expostos às lesões traumato-ortopédicas.

    Do grupo de atletas lesionadas, 82% apresentavam alterações na postura que podem aumentar o risco à lesão (Gráfico IV), enquanto que, no grupo de atletas não lesionadas durante as partidas, somente 2% delas apresentavam alterações posturais (Gráfico V). Este resultado mostra a maior incidência de lesões em atletas com desvios posturais.

    As principais alterações posturais apresentadas foram anomalias do pé (83%), aumento do ângulo Q (80%), rotação interna de pelve (78%), assimetria de membros inferiores (72%) e genuvalgo (70%).


Discussão

    Nesta pesquisa a entorse de tornozelo, por inversão, de grau II, foi a lesão de maior incidência. No tornozelo as estruturas ligamentares possuem maior reforço na loja medial e a diferença angular entre as duas pinças maleolares propicia maior exposição do campo lateral, por isso, habitualmente lesões por inversão, são vistas no vôlei, basquete e também no futebol.

    O ligamento lateral mais comumente lesado é o ligamento talofibular anterior, que é o estabilizador primário do tornozelo em flexão plantar. O ligamento calcaneofibular, ou estabilizador secundário, resiste à inversão do tálus e do calcâneo. Ele é habitualmente rompido em associação com uma ruptura do ligamento talofibular anterior (BROWN e NEUMANN, 1996).

    Observou-se nesta pesquisa que 83% das atlestas lesionadas apresentavam anomalias do pé. Segundo GOULD III (1993), o pé pronado em combinação com treinamento intenso e a utilização inadequada de calçados esportivos, podem criar uma sobrecarga excessiva sobre as estruturas da extremidade inferior, levando ao entorse de tornozelo. Por outro lado, o pé plano ou cavo, tensão e debilidade do músculo tríceps sural e assimetria linear dos membros inferiores, alterações também encontradas na maioria das atletas lesionadas, desta pesquisa, podem produzir uma pronação aumentada e prolongada do pé.

    Em relação a pronação do pé, ainda pode-se afirmar que esta anomalia associa-se com uma rotação interna obrigatória da tíbia e do fêmur, criando um vetor valgo na largura das pelves, genu-varo ou genu-valgo, o que conseqüentemente leva ao aumento do ângulo Q. As tensões musculares tracionando as aponevroses, também fazem surgir desvios nas articulações (DENYS-STRUYF, 1995).

    O genu-valgo esteve presente em 70% da atletas lesionadas e esta deformidade do joelho, segundo GRELSAMER e KLEIN (1998), contribui significativamente para o aumento do ângulo Q. Também, tem sido firmado que a espinha ilíaca ântero-superior (EIAS), é mais lateral nas mulheres, o que também leva ao aumento do ângulo-Q (SILVA, 2002).

    O aumento do ângulo Q, significa um alinhamento deficiente rotacional, e consequentemente um alinhamento anormal da patela (SILVA, 2002). Quando existe um mau alinhamento patelar sempre existirão desvios compensatórios em outras articulações, pois todos os músculos estão associados entre si (SILVA, 2002).

    O desalinhamento patelar faz com que haja uma insuficiência dos músculos estabilizadores dinâmicos da patela (semitendinoso, sartório, grácil e vasto medial obliquo) e frouxidão do retináculo medial, o que pode levar ao derrame articular crônico e/ou repetitiva subluxação (GRELSAMER e KLEIN, 1998; DOUCETTE E GOBLE, 1992; HILYARD, 1990 e ZAPPALA et al.,1992), isto pode explicar a incidência de entorses de joelho presente nesta pesquisa.

    Outra observação importante, foi a incidência de hiperlordose lombar e escoliose nas atletas, o que leva ao desalinhamento do membro inferior, aumentando o risco de lesões. Segundo BRACCIALLI (2000), a lordose lombar nas meninas mostra-se mais proeminente do que nos meninos em diferentes grupos etários. Para POUSSA e MELLIN (1992) e SOUCHARD e OLLIER (2001), as meninas estão mais predispostas a desenvolverem uma escoliose idiopática progressiva devido à baixa resistência de sua coluna, ao pico de crescimento ser mais precoce e à maior flexibilidade de seus ligamentos.

    Observou-se também a presença de pequenas assimetrias de comprimento dos membros inferiores (inferiores a 20mm). Para GOULD III (1993), em atletas submetidos a sobrecarga e estresse por esforço repetido pequenas assimetrias são significativas. Além das dores no quadril, na coluna lombar e também nos membros inferiores, relatadas pelas atletas, esta assimetria causa mudanças compensatórias (maior pronação do pé do lado do membro inferior mais longo ou mais curto).

    A dificuldade de adaptação ao uso de chuteiras com travas pode ter interferido na incidência das entorses de tornozelo e joelho, pois, as chuteiras com travas, usadas pelas atletas, causaram uma instabilidade lateral do tornozelo. Observou-se que as mulheres têm um período maior de adaptação ao uso de chuteiras com travas. Ao correr, assumem uma posição de genu-varo com tornozelos invertidos.


Conclusão

    Evidenciamos que a incidência de lesões esportivas estão diretamente relacionadas com alterações posturais presentes nas atletas. O que enfatiza a importância da Reeducação Postural Global na Fisioterapia Esportiva como prevenção de lesões.

    Todos os atletas devem receber uma avaliação postural global, pois somente essa avaliação pode deixar evidente a associação existente entre os músculos e as articulações, desta forma, um tratamento global de cadeias musculares deve ser prescrito e não um tratamento localizado.

    A amostra desta pesquisa foi formada por adolescentes do sexo feminino. Além das meninas apresentarem características posturais específicas que aumentam a incidência de desvios posturais, a adolescência caracteriza-se por ser uma fase em que ocorre alterações significativas repentinas e desordenadas do corpo.

    Portanto, este período etário, facilita o aparecimento ou acentuação dos desvios na postura, tornando-o como o período mais adequado para interferir sobre as estruturas esqueléticas, pois o crescimento não encontra-se, totalmente concluído.


Referências bibliográficas

  • BRACCIALLI, Lígia Maria P.. Estudo das relações existentes entre crescimento e desvios na postura. Reabilitar, 9:19-24,2000.

  • BRODY, L.T. e THEIN, J.M. Nonoperative treatment for patellofemoral pain. J.Orthop.Sports Phys. Ther.28(5):336-344, 1998.

  • BROWN, David E. e NEUMANN, Randall D.. Segredos em Ortopedia. Porto Alegre/RS. Editora Artes Médicas.1996.

  • BUSQUET, Léopold. As cadeias musculares - volume 2, Lordoses - Cifoses - Escolioses e Deformações Torácicas. 1ª Edição. Edições Busquet, Belo Horizonte, 2001. 191 p.

  • DENYS-STRUYF, Godelieve. Cadeias musculares e articulares: o método G.D.S. São Paulo, Editora Summus, 1995. 133 p.

  • DOUCETTE, S.A. e GOBLE, M. The effect of exercise on patelar tracking in lateral patellar compression syndrome. Am.J.Sports Med.20(4):434-40, 1992.

  • EITNER D. et.al. Fisioterapia nos Esportes. São Paulo/SP. Editora Manole. 1989.

  • FERNANDES, José Luiz. Futebol: Ciência, Arte ou Sorte. São Paulo/SP. Editora Pedagógica e Universitária - EPU. 1994.

  • GOULD III, James A. Fisioterapia na ortopedia e na medicina do Esporte. São Paulo/SP. Editora Manole. 1993.

  • HILYARD, A. Recent developments in the management of patello-femoral pain. Physiotherapy. 76(9);559-65, 1990.

  • POUSSA, M. e MELLIN, G. Spinal mobility and posture in adolescent idiopathic scoliosis at there stages of curve magnitude. Spine, v.17, n.7, p.757-760, 1992.

  • RODRIGUES, Ademir. Lesões musculares e tendinosas no esporte. CEFESPAR, 1ª Edição, São Paulo, 1994. 164 p.

  • SOUCHARD, Philippe-Emmanuel e OLLIER, Marc. As escolioses - seu tratamento fisioterapêutico e ortopédico. Editora Realizações, São Paulo, 2001. 240 p.

  • SILVA, Rogério de Paula. Estudo das alterações posturais em indivíduos portadores de Síndrome da Dor Patelo-femoral. Reabilitar 15:6-19,2002.

  • SILVA, Paulo Roberto Santos. O papel do Fisiologista Desportivo no futebol - Para que? e Por que? Reabilitar, 13:30-35, 2001.

  • SOUCHARD, P.E. Reeducação postural global: método do campo fechado. 2ª edição, São Paulo: Editora Ícone, 1986, 104 p.

  • TANAKA, Clarice e FARAH, Estela. Anatomia funcional das cadeias musculares. São Paulo: Ícone, 1997. 105 p.

  • ZAPALLA, F.G. et al.. Rehabilitation of patellofemoral joint disorders. Ortho. Clin. North Am. 23(4):555-66, 1992.

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