Aspectos das lesões esportivas em atletas com deficiência visual
No Brasil, o esporte paraolímpico teve um crescimento nos últimos anos, principalmente após os Jogos Paraolímpicos de Atenas, em 2004. A divulgação pela mídia fez com que um maior número de pessoas com deficiência procurasse o esporte como forma de atividade física recreacional ou competitiva. Sendo assim, o aumento do número de atletas com deficiência praticantes de atividade física também gerou um crescimento no número de lesões esportivas decorrentes de sua prática.
Estudos epidemiológicos sobre lesões em atletas com deficiência são importantes para informar aos atletas e treinadores os riscos lesionais do esporte, prover informações para a equipe de saúde, assegurar atendimento adequado e dar base para a realização de um trabalho preventivo para reduzir a incidência de lesões esportivas nessa população(1).
Alguns estudos na área de lesão esportiva em atletas com deficiência já foram publicados(2-4), porém a maioria apresenta metodologia que agrega dados de diferentes deficiências e modalidades esportivas, tornando a amostra heterogênea e inespecífica(5).
A especificação desses dados, de acordo com o grupo de atletas com deficiência e modalidade praticada, pode informar a respeito das lesões esportivas que acometem uma modalidade ou um grupo de atletas com deficiência, auxiliando na aplicação de estratégias preventivas específicas. Diante desses fatos, esta pesquisa apresenta as lesões esportivas que acometem apenas atletas com deficiência visual.
Para competir, o atleta com deficiência visual passa por um processo de classificação visual composta de três categorias: B1 – cegos totais (podem ter percepção luminosa, mas são incapazes de reconhecer a forma de uma mão a qualquer distância em qualquer direção); B2 – deficientes visuais (reconhecem a forma de uma mão, sua percepção visual não ultrapassa 2/60 e seu campo de visão alcança um ângulo inferior a cinco graus); e B3 – deficientes visuais com maior visão (a percepção visual se situa entre 2/60 metros e 6/60 metros e seu campo visual alcança um ângulo entre cinco e 20 graus)(6).
Este estudo teve como objetivo principal analisar a frequência das lesões esportivas em atletas com deficiência visual, além de identificar as áreas corporais mais lesionadas, o mecanismo das lesões esportivas, as principais lesões esportivas que acometem os atletas com deficiência visual e verificar se o grau de deficiência visual apresenta relação com a incidência de lesões esportivas.
MÉTODOS
O projeto de pesquisa foi submetido para avaliação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Unicamp, com protocolo nº 340/2007, sendo aprovado em junho de 2007.
SUJEITOS
Participaram da pesquisa atletas de elite, de ambos os sexos, com deficiência visual, convocados para representar a delegação brasileira em competições internacionais, no decorrer dos anos de 2004 a 2008, nas modalidades de: atletismo, futebol de 5, goalball, judô e natação. Foram excluídos do estudo atletas com lesões não ocasionadas durante a prática esportiva e os atletas cujos dados estavam incompletos na ficha de avaliação. As lesões recidivas foram contabilizadas apenas uma vez, mesmo ocorrendo em competições seguintes.
Todos os atletas receberam a classificação visual de acordo com as regras internacionais, propostas pela IBSA (B1, B2 e B3), realizada pelos médicos representantes da federação (IBSA) nos eventos espor tivos realizados.
Os atletas foram informados sobre os benefícios e riscos da participação como voluntários no estudo, de acordo com os critérios propostos para pesquisas com humanos, como exemplificado no modelo do termo de consentimento. As referidas instituições organizadoras dos eventos esportivos foram informadas e autorizaram a realização do estudo.
Local de pesquisa
A pesquisa foi baseada na coleta de dados de competições internacionais de 2004 a 2008, sendo as seguintes: Jogos Paraolímpicos de 2004, Atenas (GRE); Jogos Pan-Americanos IBSA 2005, em São Paulo (SP); Jogos Mundiais IBSA 2007, em São Paulo (SP); Jogos Pan-Americanos 2007, Rio de Janeiro (RJ); Jogos Paraolímpicos de 2008, em Pequim (CHI).
Descrição do instrumento
Os dados foram coletados a partir de modelo utilizado pela coordenação médica do Comitê Paraolímpico Brasileiro e da Confederação Brasileira de Desporto para Cegos, composto dos seguintes dados: nome, modalidade, idade, classificação visual (B1, B2, B3), local de lesão e diagnóstico da lesão.
Definição de termos
No presente estudo foi definida como lesão esportiva qualquer lesão que ocorra com o atleta durante prática, treinamento ou competição que cause a interrupção, limitação ou modificação de sua participação por um dia ou mais(7).
Para padronização quanto à localização das lesões, a pesquisadora considerou cinco segmentos corporais, com suas regiões específicas:
Cabeça: cabeça, face e pescoço.
Membro superior: cintura escapular, ombro, braço, cotovelo, antebraço, punho, mão e dedos.
Membro inferior: cintura pélvica, pube, quadril, glúteo, coxa, joelho, perna, tornozelo, pé e dedos.
Coluna: cervical, torácica e lombar.
Tronco: tórax e abdome.
Com relação ao mecanismo da lesão foi utilizada a denominação de lesão de sobrecarga e lesão de acidente esportivo tendo a seguinte definição(8):
A lesão de sobrecarga é caracterizada por microtraumas de repetição, resultantes da dosagem de cargas físicas de repetição com uma recuperação inadequada do sistema musculoesquelético.
A lesão por acidente esportivo ocorre de forma única, aguda, resultando em um impacto ou macrotrauma.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
Os dados coletados foram transformados em algarismos e tabulados no programa Microsoft Excel 2007®. Utilizou-se a estatística descritiva para calcular a frequência total e relativa dos dados coletados. A normalidade dos dados foi avaliada por meio do teste de Shapiro-Wilk. A comparação dos resultados em relação ao sexo e a classificação visual foi feita através do teste t de Student para o sexo e mecanismo. Para a classificação visual foi utilizado o teste de ANOVA one way. Quando os dados não eram normais foram utilizados os equivalentes não paramétricos de Mann-Whitney (para o teste t) e Kruskal-Wallis (para ANOVA). Os dados da modalidade de futebol de 5 não fizeram parte das comparações por apresentar apenas atletas do sexo masculino e com classe B1. As análises foram feitas através do programa estatístico SPSS 14.0® para Windows®. Para a comparação múltipla do teste Kruskal-Wallis foi utilizado o teste de DUNN através do Bioestat 5.0®.
RESULTADOS
Participaram do estudo 131 atletas, sendo que 102 apresentaram alguma lesão esportiva. As tabelas 1, 2, 3, 4 e 5 e as figuras 1, 2, 3 e 4 apresentam os números de atletas participantes e lesionados por sexo e classe visual.
DISCUSSÃO
De 315 lesões registradas no estudo, 27 (8,57%) eram lesões recidivas. A não sensação dolorosa pode estar relacionada à decisão de retorno precoce do atleta ao treinamento após uma lesão, não levando em consideração o processo de desadaptação causado pelo afastamento prolongado(9), podendo ocasionar a recidiva ou o agravo da lesão. Por esse motivo, no presente estudo, as lesões recidivas foram contabilizadas apenas uma vez.
É muito comum no esporte profissional, tanto olímpico quanto paraolímpico, a pressão sobre o retorno do atleta à prática esportiva após uma lesão. Porém, a equipe de saúde deve estar muito segura ao liberar o atleta, tendo como base a evolução do quadro, tempo de cicatrização dos tecidos, processo de reabilitação e o relato do atleta.
Foi possível verificar uma redução da porcentagem de atletas lesionados durante um ciclo paraolímpico (Jogos Paraolímpicos de 2004 e de 2008), mesmo com o aumento do número de participantes (Tabela 5). Essa redução está relacionada ao investimento nos atletas e na equipe de saúde (médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, psicólogos), que acompanharam os períodos de treinamento e competição, promovendo não apenas o tratamento de afecções, mas também orientações preventivas.
De forma geral, nas cinco competições avaliadas, dos 131 atletas participantes, 102 (77,86%) apresentaram lesão esportiva, com um total de 288 lesões (Tabela 5). O risco de lesão em atletas com deficiência visual é maior, já que apresentam um número elevado de lesões por competidor quando comparados a atletas com outras deficiências(7). Porém, este valor de referência não foi especificado para que uma comparação seja realizada com os dados encontrados.
A maior incidência de lesões esportivas em atletas com deficiência visual ocorreu nos membros inferiores (57,99%), seguidos de membros superiores, coluna, cabeça e tronco (Figura 2). Estes dados foram encontrados em outras referências(3,7,10,11).
Esse resultado pode ser explicado pelo motivo que a propriocepção em indivíduos cegos tende a ser pior que naqueles com visão parcial, afetando principalmente os membros inferiores e resultando em marcha e biomecânica anormais(4).
Uma grande variedade de regiões corporais foi afetada (Figura 3), e estruturas como músculos biarticulares (na região da coxa), articulações com maior grau de liberdade e mais instáveis (ombro e joelho) são também as com maior frequência de lesão. A modalidade esportiva também pode ser um fator determinante das regiões corporais acometidas já que cada esporte apresenta uma tática e técnica específica.
Os principais diagnósticos encontrados foram tendinopatias, contraturas e contusões. As lesões musculares e tendinosas são as mais frequentes em atletas no meio paraolímpico(12). As lesões contusas podem estar relacionadas com a deficiência visual, que deixa os atletas mais vulneráveis a colidir com outros jogadores, com barreiras na área de treinamento e competição ou com traves e outros objetos em campo(13,14).
Com relação à gravidade das lesões, encontramos que a maioria das lesões foram leves, com afastamento de zero a sete dias; lesões moderadas e graves foram menos frequentes. Estes foram os mesmos resultados encontrados em estudo anterior(15).
Com relação aos mecanismos de lesão, ocorreu um valor próximo entre lesões de acidente e sobrecarga (Tabela 2) sendo esta última a mais frequente. A lesão de sobrecarga é definida como um dano crônico ao tecido, resultado de diversos microtraumas que impedem a capacidade de recuperação do tecido(16).
Quanto menor a classificação visual do atleta, maior a sua chance de ser acometido por lesão esportiva (Tabela 1). Porém, a análise estatística (Tabela 3) revelou diferença significativa apenas entre as classes B1 e B3 (p = 0,018). Ao comparar os mecanismos das lesões por classe visual, encontrou-se diferença significativa apenas nas lesões de sobrecarga, nas quais atletas B1 lesionam mais que atletas B3, e atletas B2 mais que B3 (Tabela 4).
A capacidade de trabalho aeróbio de pessoas com deficiência visual é reduzida quando comparada com pessoas sem comprometimento visual(17,18). Com isso, atletas com deficiência visual gastam mais energia para exercer a mesma atividade, estando mais propensos a fadigar rapidamente(19) e serem acometidos por lesões de sobrecarga.
Além disso, o atleta B3 é capaz de realizar uma prévia observação do ambiente de treino ou competição (o que não é possível para o atleta B1), tornando-o mais suscetível a sofrer lesões por acidente esportivo.
Atletas do sexo feminino (83,33%) sofreram mais lesões do que atletas do sexo masculino (75,28%) (Tabela 2); porém, essa diferença não foi significativa (Tabela 3). As alterações do ciclo menstrual e o uso de anticoncepcionais têm sido relacionados como fatores desencadeadores de lesões esportivas em atletas do sexo feminino sem deficiência(20). Estudos futuros poderão verificar se existe essa relação também no esporte paraolímpico. O fato de atletas com deficiência visual do sexo masculino apresentarem melhor desempenho que atletas do sexo feminino, pode ser outro fator determinante, já que o menor desempenho desse grupo pode influenciar no surgimento de lesões esportivas.
Um estudo sobre o padrão de lesão entre atletas do sexo feminino e masculino, de 18 a 22 anos, sem deficiência, em sete modalidades, revelou não existir diferença significativa do padrão de lesão entre os dois sexos(21).
Atletas do sexo feminino são mais acometidas por lesão de sobrecarga; já os do sexo masculino, por lesões de acidente esportivo (Tabela 4). Porém, não foi encontrada diferença significativa para esses valores. Aspectos anatômicos, fisiológicos e psicológicos estão relacionados com a maior frequência de lesões por sobrecarga em atletas do sexo feminino(22). Os mesmos fatores podem estar presentes em atletas com deficiência visual.
Com o estudo foi possível concluir que os atletas com deficiência visual também estão suscetíveis a sofrer com lesões esportivas. Os membros inferiores desses atletas foram os mais acometidos, sendo coxa, joelho e ombro as regiões mais afetadas. Quanto aos diagnósticos, tendinopatia, contratura e contusão foram os mais frequentes. O sexo dos atletas não revelou ser fator determinante para o acometimento por lesão esportiva. Com relação ao grau de deficiência visual, atletas com menor capacidade visual (B1) são mais suscetíveis a lesionar em relação a atletas com melhor capacidade visual (B3). As lesões de sobrecarga acometem principalmente atletas com classe visual B1.
Espera-se que os resultados encontrados possam informar os envolvidos no esporte paraolímpico sobre os riscos lesionais, informar a equipe de saúde e assegurar atendimento adequado aos atletas e fundamentar um trabalho preventivo para reduzir a incidência de lesões esportivas nessa população.
REFERÊNCIAS
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Autores:
Marília Passos Magno e SilvaI; Edison DuarteI; Anselmo de Athayde Costa e Silva I; Hésojy Gley Pereira Vital da SilvaII; Roberto VitalIII
IFaculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP
IIFaculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas– Campinas, SP
IIIFaculdade de Medicina, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Natal, RN
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