Terapia gênica, doping genético e esporte: fundamentação e implicações para o futuro








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INTRODUÇÃO

A terapia gênica é uma área de investigação bastante recente em biomedicina que vem apresentando muitos avanços nos últimos anos. Acredita-se que a terapia gênica represente uma possibilidade de tratamento efetivo para diversas doenças cujos tratamentos são pouco eficazes e/ou restritos aos sintomas(1-7). Ainda em estágio de caráter eminentemente experimental, há problemas na aplicação da terapia gênica, sendo o controle dos riscos um dos mais importantes(7-11). Apesar disso, estudos em modelos animais(2,12-15) e também alguns estudos em humanos(1,6-7,16-19) têm apresentado resultados promissores.

Lesões decorrentes da prática esportiva constituem um dos principais fatores de abandono precoce da carreira esportiva, de afastamento prolongado de treinos e competições, e de queda no rendimento, podendo até mesmo acarretar em limitações funcionais em idades mais avançadas(20). Soma-se a isso o fato de a maioria das lesões esportivas envolverem tecidos de difícil regeneração, como tendões, ligamentos e cartilagens(17,21). A terapia gênica poderia, portanto, ter uma aplicação muito importante no contexto esportivo, permitindo, entre outras aplicações, a reconstituição de tecidos lesionados. Entretanto, esse tipo de tratamento pode ter um potencial risco de uso indevido por atletas que procuram melhorar o desempenho físico, como ocorre no esporte de alto nível. O uso indevido dessa terapia é denominado doping genético e tem alimentado um debate científico-acadêmico cuja importância vem crescendo em medicina esportiva e ciências do esporte(21-27).

Em 2001 houve um dos primeiros debates oficiais sobre o doping genético, em um encontro do Gene Therapy Working Group promovido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI)(21). Nesse encontro o comitê declarou que a terapia gênica, além da sua importância no tratamento e prevenção de doenças, tem grande potencial para uso indevido nos esportes, e que formas de detecção do doping genético devem ser desenvolvidas e aplicadas. No início de 2003 o doping genético entrou para lista dos métodos proibidos pelo COI. Em 2004, a editora chefe da revista Molecular Therapy publicou em editorial que, se nas Olimpíadas de Atenas (2004) histórias de doping genético possam ter sido apenas ficção científica, em Pequim (2008) possivelmente não mais serão(23).

Até o presente momento não há registro de nenhum caso de atleta que tenha feito uso de manipulação genética. Por outro lado, considerando que ainda não existem meios de controle e detecção do doping genético, e que, teoricamente, já é possível empregar essa técnica em seres humanos e outros animais, não se pode afirmar categoricamente que nenhum atleta já não o tenha experimentado.

Diante disso, o objetivo deste trabalho é apresentar os fundamentos da terapia gênica, assim como suas aplicações e implicações para o meio esportivo, contribuindo com esse importante debate no cenário nacional. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados Medline e Sport Discus com as palavras chaves gene transfer and sport, gene doping, gene therapy e gene therapy and sport. Os artigos encontrados foram selecionados quanto à originalidade e relevância para a discussão aqui apresentada, considerando-se o rigor e adequação do delineamento experimental, o número amostral, e a análise estatística. Artigos não indexados nessa base de dados também foram consultados quando citados pelos artigos obtidos na busca original e, atendendo aos critérios acima mencionados, foram incluídos.

 

TERAPIA GÊNICA

A terapia gênica pode ser definida como um conjunto de técnicas que permitem a inserção e expressão de um gene terapêutico em células-alvo que apresentam algum tipo de desordem de origem genética (não necessariamente hereditária), possibilitando a correção dos produtos gênicos inadequados que causam doenças. O material genético inserido nas células do paciente pode gerar a forma funcional de uma proteína que, devido a alterações estruturais no seu gene, é produzida em pequenas quantidades ou sem atividade biológica. É possível também regular a expressão de outros genes, ativá-los ou inativá-los(17,28-29).

A inserção do gene terapêutico pressupõe sua introdução por meio de vetores de transferência que sejam capazes de reconhecer as células-alvo. Há vários sistemas de inserção de material genético in vivo. Os vetores virais são os mais comuns (sendo os retrovírus e adenovírus os mais utilizados), mas outros tipos de vetores não-virais também têm sido utilizados, como lipossomas e macromoléculas conjugadas ao DNA(6,28,30). A injeção do material genético diretamente no tecido-alvo também é uma maneira de realizar a terapia gênica sem o uso de vírus(6,28,30).

Há também o sistema de terapia gênica ex vivo, no qual células do próprio paciente são retiradas por meio de biópsia, modificadas e reimplantadas no paciente, de modo que o gene terapêutico é inserido fora do organismo do paciente(28).

Antes de serem introduzidos no paciente, os vírus usados como vetores sofrem várias alterações genéticas, de modo que o gene terapêutico é inserido, enquanto diversos outros genes que lhe conferem virulência são retirados ou inativados(6,28,30). Assim, ao se ligar e invadir a célula-alvo, os vetores virais injetam seu material genético contendo o gene terapêutico no DNA do paciente, possibilitando a transcrição e tradução do gene para sua proteína funcional correspondente, ou então utilizam a maquinaria molecular da célula hospedeira para expressar seus genes.

Haisma e Hon(21) afirmam que cerca de 3.000 pacientes já receberam algum tipo de terapia gênica. Diversas doenças foram tratadas, incluindo disfunções endoteliais, hemofilia, imunodeficiência e diversos tipos de cânceres(6,18-19,31-32). De modo geral a terapia gênica tem trazido bons resultados, e seus efeitos colaterais parecem ser reduzidos a um número pequeno de pacientes, o que é indicativo animador da segurança do tratamento. De qualquer forma, os cuidados que devem ser tomados com esses procedimentos, bem como os testes de certificação da segurança das preparações são inúmeros e muito rigorosos, o que torna o tratamento extremamente caro(21).

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, há ainda muitas dúvidas a respeito dos efeitos colaterais da terapia gênica. A introdução de organismos geneticamente modificados gera grande incerteza, especialmente se for levado em conta o potencial mutagênico dos vírus(22). Além disso, os efeitos menos conhecidos dizem respeito à expressão em longo prazo dos genes introduzidos e à falta de controle da expressão de tais genes(21). Outro ponto muito importante é a possibilidade (ainda que pequena) de modificação não apenas das células somáticas, mas também das germinativas(21). Entretanto, não há dúvidas de que o principal problema que a terapia gênica enfrenta no atual estágio de desenvolvimento é a elevada capacidade imunogênica dos vetores virais introduzidos no paciente, o que pode ser importante fator de complicação decorrente do tratamento(7,9-11). Ainda que vetores não virais sejam alternativa interessante de tratamento, eles também apresentam problemas de eficácia, toxicidade e resposta inflamatória(29).

 

DOPING GENÉTICO

De acordo com a definição de 2004 da World Anti-Doping Agency (WADA), doping genético é o uso não terapêutico de células, genes e elementos gênicos, ou a modulação da expressão gênica, que tenham a capacidade de aumentar o desempenho esportivo(24).

Ainda que esteja sendo desenvolvida com o propósito de tratar doenças graves, a terapia gênica, assim como diversas outras intervenções terapêuticas, tem grande potencial de abuso entre atletas saudáveis que queiram melhorar o desempenho. A história tem mostrado que atletas são capazes de ignorar diversos riscos na busca de ultrapassar seus limites competitivos(33). A exemplo de fármacos de efeitos colaterais desconhecidos, é muito provável que atletas submetam-se à terapia gênica para fins de ganho no desempenho competitivo mesmo sabendo que existem riscos conhecidos e que também existem riscos que ainda são desconhecidos(21).

Considerando que a terapia gênica está apenas em estágio inicial de desenvolvimento e que, teoricamente, os atletas ainda não fazem uso desse tipo de estratégia ergogênica, pode-se apenas comentar sobre os genes que são candidatos importantes ao uso indevido no meio esportivo. São eles: eritropoetina, bloqueadores da miostatina (folistatina e outros), vascular endothelial growth factor (VEFG), insulin-like growth factor (IGF-1), growth hormone (GH), leptina, endorfinas e encefalinas, e peroxissome proliferator actived receptor delta (PPARd)(21,34).

Eritropoetina

A eritropoetina é uma proteína produzida nos rins cujo principal efeito é o estímulo da hematopoese(25). Logo, uma cópia adicional do gene que codifica a eritropoetina resulta no aumento da produção de hemácias, de modo que a capacidade de transporte de O2 para os tecidos é aumentada. Esse tipo de doping seria, portanto, especialmente ergogênico para atletas de endurance.

Pesquisas com ratos e macacos conseguiram com sucesso transferir uma cópia adicional do gene da eritropoetina(12,25-26), sugerindo que esse tipo de doping já seja factível. Entretanto, é muito provável que a super-expressão de eritropoetina tenha efeitos prejudiciais importantes em pessoas saudáveis, haja vista que foi observada uma elevação muito acentuada do hematócrito de macacos (de 40% a aproximadamente 80%)(12). Isso obviamente pode representar um risco sério de comprometimento da função cardiovascular, incluindo dificuldade de manutenção do débito cardíaco e da perfusão tecidual, devido ao substancial aumento da viscosidade sanguínea. Além disso, foi relatada anemia grave em alguns animais por causa de uma resposta auto-imune à transferência do gene extra(35). Esses relatos levantam sérias dúvidas quanto à real possibilidade de uso da transferência do gene da eritropoetina em atletas.

Bloqueadores da miostatina

A miostatina é uma proteína expressa na musculatura esquelética tanto no período embrionário quanto na idade adulta. Sua ação consiste em regular a proliferação dos mioblastos durante o período embrionário e a síntese protéica na musculatura esquelética durante e após o período embrionário(36-39). Em algumas raças de bois, observa-se crescimento incomum da musculatura de alguns animais (fenômeno conhecido por double muscling). Há poucos anos foi verificado que esses animais apresentavam mutações no gene da miostatina, de modo que se formava uma proteína não funcional, o que demonstrou que a miostatina inibia o crescimento da musculatura esquelética(40-41). Recentemente foi descrito o caso de uma criança que apresentava fenótipo semelhante ao double muscling. Foi observado que essa criança também tinha deleções no gene da miostatina(39). Lee e McPherron(37), utilizando modelos de ratos transgênicos, concluíram que a super-expressão de bloqueadores da miostatina, tais como folistatina, leva ao mesmo fenótipo de double muscling. A miostatina inibe tanto a hiperplasia quanto a hipertrofia muscular, sendo que o ganho de massa muscular decorrente do bloqueio da miostatina se dá principalmente pelo aumento no número de fibras musculares(37).

Em vista disso, acredita-se que o bloqueio da sinalização da miostatina seja um dos candidatos de maior potencial de abuso no esporte, já que o ganho de massa muscular pode ser decisivo em diversas modalidades esportivas. Contudo, a utilização de bloqueadores da miostatina como recurso ergogênico talvez ainda esteja um pouco distante, já que os estudos com bloqueio da miostatina envolveram animais transgênicos, ou seja, que não produziam a proteína desde o início do desenvolvimento. Não se sabe, portanto, quais são exatamente os efeitos quando o bloqueio ocorre apenas na idade adulta, período em que não se observa aumento no número de fibras musculares. Outra questão importante diz respeito à possibilidade de expressão dos genes inibidores da miostatina em outros tecidos musculares, como os lisos e o cardíaco. Apesar desse risco não ser muito alto, uma vez que os animais do estudo de Lee e McPherron(37) expressaram os transgenes apenas na musculatura esquelética, não se pode descartar essa hipótese, considerando que não há dados na literatura sobre transferência vetorial desses genes e que envolvam seres humanos.

VEGF

O VEGF (ou fator de crescimento do endotélio vascular) é uma proteína que desempenha importante papel no crescimento do endotélio vascular, na angiogênese e vasculogênese(18-19). A terapia gênica com VEGF é uma das poucas já utilizadas em seres humanos. A introdução do gene que codifica a VEGF em pacientes com disfunção endotelial responsável por quadros de doença arterial coronariana e doença arterial periférica tem produzido bons resultados, com formação de novos ramos vasculares(18-19).

Em atletas, a inserção vetorial do VEGF poderia produzir vasculogênese. Dessa maneira, o fluxo sanguíneo para todos os tecidos seria aumentado, assim como sua oxigenação e nutrição. Considerando que isso ocorra em tecidos como a musculatura esquelética e a cardíaca, pode-se esperar aumento da produção energética, diminuição da produção de metabólitos e o retardo da fadiga. Atletas de endurance seriam, teoricamente, os mais interessados na terapia gênica com inserção do VEGF(21). Uma vez que esse tipo de terapia já está sendo utilizado em seres humanos com fins terapêuticos, o doping genético envolvendo o VEGF já poderia ser empregado atualmente de maneira ilícita para melhorar o desempenho esportivo.

IGF-1 e GH

Em animais de experimentação, a introdução por vetor de adenovírus do gene que codifica a proteína IGF-1, e sua conseqüente super-expressão, aumenta a síntese protéica na musculatura esquelética. Isso foi observado tanto em animais que foram submetidos ao treinamento de força quanto em sedentários. Quando a introdução do gene extra IGF-1 foi combinada com o treinamento de força, a hipertrofia e o desenvolvimento da força foram maiores do que os observados em animais que apenas treinavam força (e não super-expressavam IGF-1) e nos que apenas super-expressavam IGF-1 (e não treinavam força)(13). Pode-se dizer, então, que a super-expressão de IGF-1 pode potencializar em grande magnitude as respostas musculares ao treinamento físico, em especial ao treinamento de força. Em vista do sucesso obtido em estudos com animais e da aparente segurança da terapia gênica com IGF-1, é possível que dentro de poucos anos ela já seja factível em humanos. Isso, obviamente, poderá ser utilizado por atletas que buscam melhorar seu desempenho, mas poderá ser também utilizado por pessoas portadoras de doenças musculares graves, como a distrofia muscular de Duchenne e outras.

Teoricamente o doping genético com GH levaria a efeitos bastante semelhantes aos produzidos por IGF-1, haja vista que a ação do GH é mediada pelo próprio IGF-1. Portanto, pode-se esperar que o doping genético com GH produza ganhos de força e hipertrofia muscular. É provável que os riscos envolvidos com a inserção do gene do GH e do IGF-1 estejam relacionados com o desequilíbrio do eixo hipotálamo-hipofisário e principalmente com o aumento da chance de ocorrência de neoplasias diversas. Há também o risco da super-expressão do GH levar a glomerulosclerose, o que já foi demonstrado em modelos animais(42).

Leptina

A leptina, hormônio peptídico produzido principalmente no tecido adiposo cuja principal ação está relacionada ao controle da sensação de fome e saciedade, redução do consumo alimentar e conseqüente perda de peso(43), também é um candidato para abuso como doping genético(22).

Em 1997 um estudo demonstrou que a introdução do gene leptina por vetor viral produzia significativa perda de peso em ratos(14). Em contrapartida, talvez o mesmo fenômeno não seja observado em humanos, já que indivíduos obesos, os quais apresentam elevada concentração plasmática de leptina, não têm apetite reduzido(44). Essa resistência à ação da leptina pode representar importante obstáculo para a terapia gênica com esse hormônio. Além disso, diferentemente dos modelos animais, o comportamento alimentar humano depende também de outros fatores (nutricionais, psicológicos, sociais e culturais).

Endorfinas e encefalinas

As endorfinas e encefalinas são peptídeos endógenos de atividade analgésica. O uso da terapia gênica com os genes da endorfina e encefalina poderia, portanto, melhorar o desempenho esportivo pela diminuição da sensação de dor associada a algum tipo de lesão, fadiga ou excesso de treinamento(21). Isso, teoricamente, permitiria que atletas treinassem mais, ou evitaria seu afastamento temporário de treinos e competições por pequenas lesões. De fato, as drogas analgésicas estão entre as mais consumidas por atletas(21), o que indica o possível interesse pela inserção desses genes. Estudos em animais demonstraram que esse tipo de terapia gênica foi capaz de diminuir a percepção de dor inflamatória(15). Entretanto, devido à grande carência de informações na literatura, é provável que o doping genético envolvendo endorfinas e encefalinas ainda esteja longe de realmente acontecer(21).

PPAR-d

As proteínas da família dos PPARs atuam como fatores de transcrição de genes envolvidos no metabolismo de carboidratos e lipídeos. Primeiramente elas foram descobertas desempenhando papel na síntese de peroxissomos, e por esse motivo foram denominadas de peroxissome proliferator-actived receptors(45). Existem diversas proteínas PPAR, mas a que apresenta, pelo menos do ponto de vista teórico, maior potencial para abuso em doping genético é a PPAR-d(34).

A PPAR-d é uma proteína reguladora-chave do processo de oxidação de lipídeos. Atuando no fígado e no músculo esquelético, ela estimula a transcrição de diversas enzimas que participam da b-oxidação(46). A PPAR-d também está relacionada com a dissipação de energia na mitocôndria que ocorre por meio das proteínas desacopladoras, de modo que sua ação leva à diminuição da produção de energia. Como resultado, a PPAR-d diminui a quantidade de tecido adiposo, reduz o peso corporal e aumenta a termogênese(46). Essa é, portanto, uma das justificativas para o possível interesse de atletas em usar doping genético com PPAR-d. A melhora na oxidação lipídica, além de reduzir a adiposidade (efeito que despertaria o interesse de atletas de quase todas as modalidades esportivas), preservaria os estoques de glicogênio, aumentando o tempo de tolerância ao esforço(47) e provavelmente o desempenho em provas de resistência.

Outro motivo para o possível interesse em utilizar o PPAR-d como doping genético é o seu provável papel na conversão de fibras musculares do tipo II em fibras do tipo I(48). Portanto, atletas cujas modalidades não dependem da força, mas exigem que eles se mantenham com baixo peso e baixo percentual de gordura (como maratonistas, ginastas, patinadores e outros) seriam potencialmente os mais interessados na transferência do gene PPAR-d.

 

TERAPIA GÊNICA EM ATLETAS

Além do potencial interesse pelo uso da terapia gênica como forma sofisticada e indetectável de doping, atletas poderiam beneficiar-se das técnicas de transferência de genes como qualquer outra pessoa cujo quadro clínico imponha tal necessidade. Conforme mencionado anteriormente, as técnicas genéticas de reconstrução de tecidos lesionados poderiam ser largamente utilizadas no meio esportivo para o tratamento e reabilitação de lesões(21). A transferência de genes que codificam fatores de crescimento poderia facilitar e potencializar o tratamento de lesões ósteo-músculo-articulares que atualmente requerem cirurgias e longo período de reabilitação(17).

Uma questão muito importante sobre a relação da terapia gênica com o esporte foi levantada em 2006 por Haisma e Hon(21). Segundo a definição da WADA, o uso não terapêutico de técnicas de transferência de genes que possam melhorar o desempenho esportivo é considerado doping e, portanto, proibido. Tal definição, apesar de clara, não contempla diversas possibilidades, como também não menciona as conseqüências do direito dos atletas de usar a terapia gênica. Por exemplo, uma pessoa que sofra de alguma distrofia muscular ou anemia grave poderia se tornar atleta após o uso terapêutico da transferência de genes como IGF-1, folistatina ou eritropoetina? Ou então, um atleta que necessite de terapia gênica e que em decorrência do tratamento adquira alguma vantagem competitiva, poderia continuar competindo? Pela definição poderia, mas tal permissão esbarra nas questões éticas e morais que dão toda a base para a proibição do doping.

Sem dúvida, o debate dessas e outras questões sobre a terapia gênica e o esporte precisa ser intensificado, de modo que se coíbam abusos sem que o direito de uso terapêutico por atletas que necessitem da terapia gênica seja prejudicado.

 

RISCOS ASSOCIADOS AO DOPING GENÉTICO

Para avaliar os riscos envolvidos com o doping genético, é preciso primeiramente conhecer os riscos da terapia gênica. Sabe-se que uma das principais preocupações da terapia gênica é a utilização de vírus como vetor. Apesar dos rigorosos controles em todas as etapas de preparação dos vírus geneticamente modificados, existe o risco do vírus provocar respostas inflamatórias importantes no paciente, embora esse seja um dos assuntos sobre os quais mais se tem buscado soluções(7-11,29). A chance do gene ser introduzido erroneamente em células germinativas, apesar de muito baixa, deve também ser considerada como um risco inerente ao procedimento.

Outro problema relacionado ao vetor viral é a capacidade de mutação e replicação que ele poderia ter(49), especialmente se houver falhas em sua preparação, o que pode ser comum em laboratórios "clandestinos" que se disponham a realizar doping genético(21). Além disso, há também os riscos não relacionados ao vetor, mas aos efeitos do gene inserido, como o aumento da viscosidade sanguínea pela super-expressão de eritropoetina(12), ou o aumento da chance de ocorrer neoplasias pela super-expressão de fatores de crescimento. A falta de controle sobre a expressão do gene inserido pode, de forma semelhante, representar um risco da terapia. Os riscos específicos de cada gene são menos previsíveis do que os riscos gerais inerentes à técnica de transferência genética, especialmente se considerarmos que os testes clínicos serão realizados na maioria das vezes em pessoas doentes com deficiência no gene testado. Logo, não seria possível saber antecipadamente como pessoas saudáveis, como é o caso dos atletas, responderiam ao mesmo tratamento.

Apesar disso, o número relatado de problemas decorrentes da terapia gênica é bastante reduzido, e até o momento tudo indica que, se os procedimentos estiverem todos de acordo com os critérios de segurança, a possibilidade de ocorrerem problemas é baixa, indicando que a terapia gênica tem-se mostrado relativamente segura(21).

 

CONTROLE E DETECÇÃO DO DOPING GENÉTICO

Apesar de não eliminar completamente o doping, a possibilidade de detecção e as sanções decorrentes do flagrante no teste antidoping pelo menos inibem o uso de drogas ilícitas pelos atletas. O fato do doping genético, a princípio, não ser detectável(27), pode estimular seu uso em larga escala no meio esportivo. Por esse motivo, é muito importante que medidas de prevenção sejam discutidas imediatamente pela comunidade científica e pelos órgãos reguladores do esporte. Programas educacionais envolvendo técnicos, preparadores físicos, atletas e suas famílias, que demonstrem claramente todos os riscos inerentes à utilização indiscriminada da terapia gênica, provavelmente são a forma mais eficaz de evitar o doping genético no futuro próximo.

Paralelamente, novas estratégias de detecção devem também ser desenvolvidas. Ainda assim, não se sabe realmente se o doping genético poderá ser, de fato, detectado. Caso o gene transferido tenha sua expressão confinada a alguns tecidos e seus produtos não atinjam a corrente sanguínea, somente por meio de biópsia poderá ser possível fazer um teste antidoping confiável. Isso claramente se impõe como uma imensa barreira no controle do doping genético(21,34).

Atualmente já se comenta sobre alguns meios de detectar o doping genético. Sabe-se, por exemplo, que é possível diferenciar, por meio do padrão de glicosilação protéico, a eritropoetina produzida pelo gene nativo da produzida pelo gene transferido(26). Obviamente, tal diferenciação só será possível nos casos em que o doping genético envolva genes cujos produtos alcancem a circulação. De qualquer maneira, resta saber se a diferença no padrão de glicosilação ocorre apenas para a eritropoetina, ou se ocorre também para outras proteínas.

Outros possíveis métodos de detecção do doping genético seriam: detecção de anticorpos dirigidos contra o vírus inserido, cuja possibilidade de aplicação é muito baixa, uma vez que o atleta poderia estar infectado com um vírus da gripe, por exemplo, e ter um resultado falso-positivo no teste, padrão de expressão gênica por técnica de microarrays, na qual se estabelece o quanto expresso está sendo uma série de genes, mas que exige também coleta de amostras teciduais e valores de referência para cada gene analisado(34).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da discussão exposta neste artigo, percebe-se que a terapia gênica é uma técnica terapêutica muito promissora na medicina, cujos rápidos avanços têm-na tornado cada vez mais factível. Isso nos remete ao grande potencial para o seu uso indevido no meio esportivo por atletas que ignoram os riscos para ganhar vantagem competitiva. Diversos genes teriam a capacidade de promover ganhos substanciais no desempenho atlético, o que poderia ser decisivo em muitas modalidades. Uma vez que os métodos tradicionais de detecção de doping não são capazes de revelar o uso do doping genético, torna-se imediata a necessidade de ampliação desse debate no meio científico e no meio esportivo, a fim de que estratégias de controle e detecção sejam estudadas e colocadas em prática.

 

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Guilherme Giannini ArtioliI; Rosário Dominguez Crespo HirataII; Antonio Herbert Lancha JuniorI

ILaboratório de Nutrição e Metabolismo Aplicados à Atividade Motora, Departamento de Biodinâmica do Movimento Humano, Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
IIDepartamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil


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